quarta-feira, 23 de abril de 2008

A menopausa das flores


Um copo de café com leite para o Filho. Um pão com queijo mineiro e uma lambuzada de manteiga para a Filha. Um pedaço de mamão com suco de laranja para a Mãe. Um prato de ovos mexidos com presunto para o Pai.

Uma mesa de madeira bruta, com quatro cadeiras talhadas com lança indígena do Avô. O Filho é o primeiro, da esquerda para a direita. Depois vem a Filha. Do outro lado da mesa, a Mãe e depois, o Pai. Ainda na mesa: açúcar em um açucareiro de aço com uma vaca malhada estampada do lado; leite em uma leiteira xadrez nas cores vermelha e branca com um pequeno pano para proteger a mão do calor do leite quente; bolachas recheadas com chocolate e desenho de monstrinhos na parte de fora, dentro de um pote de vidro temperado com um sol pintado pela Avó quando ela ficou internada por causa da diabetes crônica; pão francês em uma cesta de palha coberta por um lenço bordado com tecido verde e branco, com formato de porquinhos; bolo de chocolate coberto com claras em neve em cima de um prato com uma tampa peneirada para bolos de chocolate cobertos com claras em neve.

O Pai termina seu café com pressa, beija a Mãe no rosto, avisa para que a Filha e o Filho se comportem na escola, se benze diante das duas urnas com as cinzas do Avô e da Avó, pega sua pasta que fica no sofá marrom com uma mancha de mostarda no braço direito, abre a porta da frente e desce até a garagem para entrar no carro e ir para o trabalho no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.

O Filho termina seu café, arrota, é repreendido pela Mãe, esbarra no ombro da Filha quando levanta, vai para o banheiro escovar os dentes, urina, se masturba pensando na professora de Educação Física, lava as mãos, sai do banheiro, pega a mochila que fica em cima da sua cama com o caderno, o estojo, a erva, o pó e o isqueiro, volta para a sala e sai sem falar com a Mãe e a Filha.

A Filha termina seu café, levanta, vai para o banheiro se maquiar, faz o exame de gravidez, confere se dá negativo, joga o exame dentro da bolsa de maquiagem, passa o batom, penteia os cabelos, sai do banheiro, vai até o quarto, abre a terceira gaveta do armário que fica do lado esquerdo da cama, pega a camisinha para tentar mais uma vez convencer o Namorado, guarda na mochila junto com o pente, o esmalte, o celular e a lixa de unha, esquece os cadernos em cima da cama, volta para a sala, dá um beijo na testa da Mãe, avisa que não vai dormir em casa e sai.

A Mãe termina seu café, retira o açúcar em um açucareiro de aço com uma vaca malhada estampada do lado, o leite em uma leiteira xadrez nas cores vermelha e branca com um pequeno pano para proteger a mão do calor de leite quente, as bolachas recheadas com chocolate e desenhos de monstrinhos na parte de fora, dentro de um pote de vidro temperado com um sol pintado pela Avó quando ela ficou internada por causa da diabetes crônica, o pão francês em uma cesta de palha coberta por um lenço bordado com tecido verde e branco com formato de porquinhos e o bolo de chocolate coberto com claras em neve em cima de um prato com uma tampa peneirada para bolos de chocolate cobertos com claras em neve. Pára em frente às urnas, abre-as e cospe dentro de cada uma, as fecha, vai até a área de serviço, enche de água um regador, rega os vinte e três vasos de flores que fazem parte da decoração da casa, termina de regá-las, pega as roupas sujas, coloca as roupas sujas dentro da máquina de lavar, liga a máquina, pára, pensa no galã da novela, ameaça colocar a mão por dentro da calcinha que está usando, desiste, vai até o armário de eletrodomésticos, pega o triturador de alimentos, coloca as duas mãos dentro do triturador de alimentos, as mãos são decepadas, ela tira as mãos de dentro do triturador de alimentos, senta ao lado do armário de eletrodomésticos, fecha os olhos e depois de uma hora morre por causa da hemorragia.

O corpo da Mãe ficou ali por quase dois meses. Naquele dia, o Pai fugiu com a Amante-Secretária para Buenos Aires. O Filho foi preso em uma operação policial na Cidade de Deus. A Filha foi estuprada pelo Namorado por insistir em fazê-lo usar a camisinha, e morreu. A Vizinha sentiu um cheiro forte de carniça e chamou a Vigilância Sanitária. Então descobriram o corpo da Mãe.

3 comentários:

Pedro Rabello disse...

Uma família normal.

Esse post me lembrou dois filmes brasileiros recentes:
1. Estômago (a parte do triturador);
2. A Casa de Alice.

Gostei.

Vinícius Haesbaert disse...

Lek, neurótico, senti mais que drama até! E parabéns pela ótima descrição, é definitivamente um dom raro.
Linkado lá no meu, ok?

andré disse...

Ô mulher, tira a mão desse negócio!
Um tiro no cacete, meu Deus!
Sintam o drama! Sintam o drama!
E o Gabeira acende outro. E a Amy Winehouse aspira uma carreira de vodca.

Bom de palavra. Rubem Fonseca te espia. Abraço!