quinta-feira, 22 de maio de 2008

Xeque-mate


Sinto saudade. Todos os dias. Quase todos os momentos. Quase todas as horas. De tantas coisas. Mas de uma, em especial. Da mais improvável. Da mais inexplicável. Relaxa!

Preciso ter perto. Preciso ser perto. Preciso estar perto. Quilômetros. Muitos. Malditos. 1148. Mas estou perto. Tenho perto. Tenho dentro. Relaxa!

Conquistou. Imediatamente. Caí. Não levantei. Nem quero. Espero caído. Vai me levantar. Quando for perto. Me tiver perto. Me tiver dentro. Relaxa!

Imagino. Reviro. Viro. Giro em mim mesmo a sensação. Única. Não vi. Não senti. Não provei. Mas já conheço. E quero mais. Relaxa!

Segundo por segundo. Conto. Adianto os ponteiros, os calendários. Não adianta. Eles me empurram. Me jogam pra trás. Relaxa!

Está aqui. Está comigo. Certo. Imagino. Reviro. Viro. Relaxo!

E penso outra vez. Não consigo. Estou entregue. Xeque-mate.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Cinema é coisa séria


Amigo leitor, amiga dona-de-casa. O texto a seguir foi escrito por mim em meus plenos 16 anos, em 2005, quando, sabe-se lá o porquê, passava por um momento de crise com o cinema nacional. Ainda hoje deixo minha boa-vontade de lado quando o assunto é cinema nacional, mas com ressalvas e argumentos. Revirando arquivos jurássicos no computador, deparei-me com este. Aí vai, tosquice adolescente da boa:



“Cinema é coisa séria”

INFORME PUBLICITÁRIO-24/05/2020


Grande Francisco “Feinho”, o diretor de “Garfos nas Varizes”. Sempre nos disse que o mercado está aí, é só se vender a ele que tudo dá certo. E nós nos vendemos. “O ataque da soja transgênica” foi o primeiro filme do Mega Estratosférico Renovador Departamento Audiovisual Brasileiro (M.E.R.D.A. BR), um setor destinado a copiar Roliúdi e trazer pra cá a nata dos artistas de lá. Chuck Norris, Rebeca De Mornay e Steven Segal já fizeram fortuna com palestras de interpretação para jovens promissores. Criou-se um gigantesco parque industrial cinematográfico em Seropédica, para melhor acesso, com estúdios de gravação, vinte e cinco salas de cinema e pipoca a um real (projeto do governo do estado). Eu, Robert Denílson, sou o galã do semestre.


Meu contrato inclui vinte e cinco filmes. Sete com mulheres que devo proteger, pois são atormentadas pelos ex-maridos psicopatas e acabam se apaixonando por mim. Cinco com belas e jovens atrizes, em que nós nos odiamos, mas no final terminamos juntos. Três com cenas de perseguição a traficantes mexicanos e suas muchachas libidinosas. Dois com espiões malvados soviéticos que querem explodir o mundo. Dois em que encarno o Super-Brazuca, o super-herói brasileiro.E um com criancinhas das quais devo cuidar, mesmo sendo forte e másculo.

Atualmente, o maior sucesso tem sido o “Obsessão Perigosa 5”, com o Toninho Cruzes e Alda Repbolha. Mas, vem aí o mais original, o mais grande, o mais melhor filme de aventura: “A lêndia do cabelo fedido”, com Maikel Dougras e Mary Estripa.




“Cinema brasileiro é a maior diversão. Ainda mais quando é igualzinho ao dos Esteites”.
Quente Talatindo, chefe do grupo M.E.R.D.A. BR Corporeichion


*Robert Denílson não cobrou cachê em troca de seu depoimento. Só uma vaga em “Tita & Nica"

segunda-feira, 19 de maio de 2008

O que eu não tenho


Não tenho sede. Passo dias e dias sem ter vontade de beber uma gota d’água. Não tenho fome. Passo dias e dias sem ter vontade de comer um pedaço de pão. Não tenho frio. Passo meses e meses sem ter vontade de vestir um casaco. Não tenho pressa. Passo horas e horas sem ter vontade de olhar para o relógio. Não tenho tristeza. Passo noites e noites sem ter vontade de chorar. Não tenho fé. Passo domingos e domingos sem ter vontade de rezar. Não tenho força. Passo manhãs e manhãs sem ter vontade de me levantar. Não tenho paciência. Passo minutos e minutos sem ter vontade de escutar. Não tenho respeito. Passo anos e anos sem ter vontade de me desculpar. Não tenho lógica. Passo dias e dias sem ter vontade de me entender. Não tenho vícios. Passo dias e noites sem ter vontade de te ver. Não tenho prazer. Passo noites e noites sem ter vontade de gozar. Não tenho paz. Passo meses e meses sem ter vontade de viver.

Tudo isso eu não tenho. O que eu tenho, então?

Tenho medo de descobrir.

domingo, 18 de maio de 2008

06:55


Levantou-se como se aquela fosse a última oportunidade de dizer que a amava. Vestiu uma calça, uma camisa qualquer, o tênis que estava mais perto e foi. Tinha que correr. Faltavam minutos. Quinze. Na cama, ela não se mexeu. Pegou as chaves do carro. O cachorro correu atrás, mas ele fechou a porta ao sair, sem que o coitado pudesse fugir, como de costume. Desceu enlouquecidamente até a garagem. Entrou no carro. Chovia. O dia amanhecia. Mas ninguém notava.

Os sinais estavam todos livres, ruas vazias, curvas perfeitas. Faltavam minutos. Dez. Nunca imaginou aquilo. Depois te tantos anos, em uma noite sem sono descobriu que a amava. Tantas noites escondidos, como fugitivos da moral, e agora era preciso demonstrar o que tão obscuro foi por tanto tempo. Oito. Viagens que nunca aconteceram, mas eram juradas. Juras que sempre aconteceram, sem nunca serem cumpridas. Mas o amor era real, fluente. Só não-dito. Enrustido. Seis.

Estacionou. Porta do carro aberta, correu até o terminal de embarque. As lágrimas caíam com o vento ao correr desesperado. A voz dizia: última chamada para o vôo 1245, São Paulo/Nova York.. Quatro. Avistou os cabelos ruivos. Desaparecendo. Distanciando-se. Correu, chorando. Correu. Dois. Ela parecia ter esperado até aquele instante. E seus cabelos ruivos, que também esperavam, foram sumindo. Um. A porta se fechou. Não havia mais tempo. O amor ficaria para sempre ali, com ele. Guardado.

06:55

Ele sussurrou, vendo o avião sumir entre as nuvens do céu cinzento:

- Te amo.

sábado, 17 de maio de 2008

O Chefe do trigésimo sétimo andar


Aquela era uma empresa exemplar. A hierarquia era herdada de anos, anos e mais anos de uma administração impecável, competente, e principalmente, eficiente. Cada andar do prédio determinava um setor. E quanto mais alta a localização de sua sala, maior sua relevância dentro do império. Eram 37 andares. E, no trigésimo sétimo, a luz. O Chefe. Ele era único e soberano no trigésimo sétimo andar.

Gomes era recém-contratado. Ainda estava no terceiro andar, setor de relacionamentos, reles relações-públicas. O que, dentro da empresa, era um cargo menor, inferior. Mas Gomes não pretendia ficar no terceiro andar por muito tempo. Sempre ouviu que a persistência era a chave do sucesso. Sempre desconfiou que fosse desculpa de gente burra, mas preferia acreditar no dogma para lutar pelo trigésimo sétimo andar. E com o andar da carruagem, Gomes passou a demorar mais tempo dentro do elevador. Décimo oitavo. Vigésimo quinto. Trigésimo. Trigésimo terceiro.

Mas, como vários outros funcionários, Gomes nunca entendeu o porquê de o Chefe nunca ter dado as caras. Em tantos e tantos anos de empresa, o Chefe nunca saiu do trigésimo sétimo andar. Por quê? Ninguém sabia. Todos questionavam, mas ninguém sabia apontar os motivos. Gomes tinha um plano.

Os ascensoristas recebiam ordens para nunca levarem ninguém até o trigésimo sétimo andar. Até porque, o Chefe chegava em seu helicóptero. Não precisava de elevador. Então, era preciso tomar o lugar dos ascensoristas. Como? Dopando os coitados.

Então assim se fez. Gomes dopou o ascensorista do turno da noite e, quase às onze horas, com o prédio praticamente às escuras, entrou no elevador. Portas fechadas, apertou o botão do misterioso trigésimo sétimo andar. Vigésimo. Vigésimo nono. Trigésimo segundo. O elevador parou. Trigésimo sexto...trigésimo sexto. Trigésimo sexto?!

Gomes olhou para o visor do elevador. Indicava o trigésimo sexto andar. A porta do elevador se abriu. Gomes, sem entender o que estava acontecendo, saiu pelo corredor completamente escuro. Não via nada. De repente, uma voz se aproximando aos poucos:

-Não acredite em trigésimo sétimo andar. Não acredite em Chefe algum. Só acredite em uma coisa: a curiosidade matou o gato. E agora vai te matar.

Gomes sentiu a faca em seu peito. O trigésimo sétimo andar precisava existir.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Enquanto Seu Lobo não vem


Enquanto Seu Lobo não vem, quero passear por aí. Ver o outro lado. Saber como é lá fora. Sair e, talvez, não voltar. Enquanto Seu Lobo não vem, vou quebrando máscaras, dilacerando rótulos. Menos os meus. Enquanto Seu Lobo não vem, quero saber de tudo. Nada vai escapar. Nem você. Enquanto Seu Lobo não vem, eu como, como, como. Vomito se quiser. Vomitarei sim, as palavras. As palavras vão fugir de mim. Enquanto Seu Lobo não vem, farei os demais de nós também fugirem. Menos você. Você fica. Enquanto Seu Lobo não vem, devorarei os livros. Página por página. Prefácio por prefácio. Enquanto Seu Lobo não vem, sairei nessa chuva. Lavarei minha alma. Enquanto Seu Lobo não vem, largarei meus modos, meus poréns, minha moral. Mas não meu moral. Você vai ver. Jogarei tudo abaixo. Você vai ver. Enquanto Seu Lobo não vem, mais ninguém também virá. Terão medo. Você não. Enquanto Seu Lobo não vem, rasgarei meus mandamentos, meus princípios. Mas não os meus finais. Nem os seus. Nem os nossos. Enquanto Seu Lobo não vem, afastarei a sanidade, a santidade. Serei insano. Enquanto Seu Lobo não vem, serei insone, guardarei a cama no armário. Dormir é para os fracos. Enquanto Seu Lobo não vem, serei forte. Derrubarei grades, romperei correntes, arrebentarei cadeados. Os fracos não terão vez. Os velhos, então, serão esfolados. Enquanto Seu Lobo não vem, serei eu o lobo. Soltarei as amarras, as prisões, os porões. Os meus. Os seus não. Enquanto Seu Lobo não vem, secarei as lágrimas, uma por uma. Mas te farei chorar. De alegria. De prazer. Enquanto Seu Lobo não vem, também terei o prazer. De te fazer sofrer. Você fica. Enquanto Seu Lobo não vem, serei livre. Você, leve e preso. Enquanto Seu Lobo não vem, serei rei. Enquanto Seu Lobo não vem, tudo. Enquanto Seu Lobo não vem, nada. Uma pena.

Ele sempre vem.

terça-feira, 13 de maio de 2008

To edit


Horas e horas ali, sobre a mesa. Registros tantos, momentos vários. A sorte estava lançada. Não era preciso tesoura, navalha ou estilete. O corte, mesmo profundo, era delicado, uma arte. O contraste incrível entre a morte de um pedaço de história e o surgimento de um outro, uma terceira via. Um novo começo. Uma manipulação mágica de discursos, uma capacidade maquiavélica de construção de verdades. O não que pode virar sim, o avesso que pode ser ícone, o talvez que se torna sempre. Nada de tesouras, não! Botões vermelhos transformam a história. E não só com fitas. Editamos nossas vidas todos os dias. Cortamos, colamos, criamos. Somos assim, editores de nossas histórias, senhores das nossas verdades.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Leopoldo & Virgílio


Leopoldo e Virgílio sempre foram muito amigos. Leopoldo durante toda sua vida foi um comunista ativo, enviou diversas cartas a Fidel com a tola esperança de que fossem lidas e lutou constantemente pela eleição do Lula. Hoje organiza protestos contra as decisões do governo. Virgílio sempre esteve ao lado dos entreguistas, apoiou as ditaduras mais severas que existiram no mundo, chorou a morte do Costa e Silva e votou em Collor sem medo. Filho de militar, sempre pensou que os homens da família iriam adorar servir ao Exército. Hoje vê o peso de suas condecorações sendo usado na exclusão do seu neto da lista de alistamento.

Apesar de possuírem posturas políticas totalmente opostas, Leopoldo e Virgílio sempre foram os melhores amigos um do outro. Mesmo com o mofo sobre o Manifesto e o bolor sobre as teses liberais, os dois não se arrependem. Simplesmente não se arrependem.

Agora, dividindo um quarto no Catete, abandonados por suas famílias, Leopoldo e Virgílio olham, com fome, para um pacotinho de biscoitos que Virgílio ganhou de uma garotinha na rua. De repente, a síntese da existência:

-Companheiro Virgílio, meu velho, não acha que deveríamos dividir igualmente este pacote de biscoitos?

-Não, meu velho Leopoldo...mas te vendo por dois reais....

sexta-feira, 9 de maio de 2008

A grande batalha hortifruti-granjeira


A manhã de sábado nunca passava em branco na praça. A feira livre era território para momentos antológicos, que poderiam ser registrados sem cortes e reunidos em um "the best of". Quantas batalhas já haviam ocorrido ali? Na barraca do seu Firmino, corvinas já voaram pelos ares em um duelo entre dois senhores portugueses. Na tenda de Dona Sula, muitos foram os sábados de ovos de codorna atirados por trás de trincheiras vegetais. Mas aquele seria um dia histórico. Quem seriam os protagonistas? Tantas senhoras viúvas, senhores aposentados, solteironas sensuais, famílias de margarina. E qual seria a quitanda contemplada? Era chegada a manhã de sábado. Dada a largada.




Alguns atritos surgiram no canto do seu Pedro, que vendia apenas verduras. Uma senhora espanhola, que segundo algumas pessoas era dona do maior bordel da Zona Leste, afirmou ter visto uma lesma em cima de uma folha de rúcula. Seu Pedro quase pulou de onde estava pra fazer a espanhola comer a folha de rúcula, porque ela inventava sempre um bicho nos produtos para poder ganhar descontos amigos. Mas não foi dessa vez. Ela foi embora sem rúcula mesmo. E sem apanhar.




Na barraca do seu Firmino, um velhinho ameaçou esfregar uma porção de mexilhão na cara de outro senhorzinho se este não saísse da sua frente. Mas ali, segundo fontes fidedignas, era uma birra de anos. Talvez séculos. Tcharam! Barraca de Tia Solanjão, uma afro-descendente de 125 quilos e um metro e cinqüenta de altura. Frutas, muitas frutas. Duas senhoras brigavam pelo seguinte motivo: havia apenas um abacaxi com uma aparência saudável. Tia Solanjão já vinha apresentando frutas de qualidade duvidosa há algum tempo, desde que havia mudado de fornecedor. E a disputa era centrada em quem levaria o último dos abacaxis. As mulheres berravam. Uma dizia que já não agüentava mais ficar com a xepa da Tia Solanjão. Que, pelo menos o abacaxi bonito ela ia levar. A outra dizia que também não ia mais ficar só comendo aquelas frutas azedas da Tia Solanjão. Que o abacaxi era a salvação. Tia Solanjão estava ficando um tanto quanto magoada com tamanha falta de consideração. Tantos anos levando frutas fresquinhas e tanta simpatia para aquelas velhas mal-agradecidas, aquela gente chata. E as velhas continuavam discutindo. Como pano de fundo, a chance de desancar a tenda de Tia Solanjão, que depois de tanto tempo fornecendo tão doce e gostoso sabor, só porque estava passando por um breve momento de crise, tinha que ouvir aqueles desaforos.




Tia Solanjão saiu de onde estava, atrás da barraca. As velhas continuavam a briga, cada vez mais exaltadas. Tia Solanjão se meteu no meio das duas. Arrancou o abacaxi da mão de uma delas. E ZAZ! Deu com o abacaxi na cabeça das velhas malucas. Tia Solanjão voltou para trás da barraca, limpou o sangue do abacaxi e o descascou. Naquela manhã o abacaxi era dela. Naquela manhã a vitória na batalha do hortifruti também era dela. Da Tia Solanjão.








quinta-feira, 8 de maio de 2008

Sono




Ele chega tarde, de mansinho. Tem um charme especial. Vai aconchegando a gente de uma forma irresistível. Nos envolve aos poucos, lentamente, como quem não quer nada. Inoportuno, aparece muitas vezes sem avisar durante o dia. E quando é de noite, hora em que adoramos ficar ao seu lado, ele muitas vezes some sem explicações. Lemos, assistimos à TV, ouvimos música, mas ele é inconveniente, acima de tudo. Não sabe a hora certa de brincar com a gente. Chega a irritar, de vez em quando.


Gosta também de chegar de forma inesperada, mas sempre deixando certas pistas antes como.......................Zzzzzzzz............








Zzzzzzz......


quarta-feira, 7 de maio de 2008

Biscoitos amanteigados


Uma xícara de chá é sempre uma xícara de chá. Um pedaço de bolo é sempre um pedaço de bolo. Mas, agora, olhando para esses biscoitos amanteigados eu vejo algo mais do que apenas biscoitos amanteigados. Eu vejo a vaca que deu o leite para serem feitos os biscoitos amanteigados. Eu vejo a plantação de trigo da qual foi retirado o trigo para serem feitos os biscoitos amanteigados. E assim é, às vezes. Sentado aqui, no canto, às vezes vejo pessoas e coisas. Apenas pessoas e coisas. Mas, às vezes, vejo biografias ambulantes e pães de bisnaga com uma história de vida mais interessante que a minha.


Por exemplo, esse garçom que está me trazendo mais uma xícara de chá de maçã: é um infeliz garçom que vive a trazer xícaras e mais xícaras de chá de maçã. A mulher sentada na mesa ao meu lado: uma ninfomaníaca selvagem pronta para saltar de onde está e atacar alguém ou algo que ela ache sexualmente atraente. A outra mulher sentada ao seu lado: uma mulher com um vestido vermelho. Apenas uma mulher com um vestido vermelho. Não vejo felicidade, tristeza, angústia, prazer. Vejo uma mulher sentada ao lado de uma ninfomaníaca selvagem e vestindo um vestido vermelho.


A mulher que está entrando pela porta: é uma coitada, sexualmente frustrada pelo marido, infeliz no casamento e ansiosa em pedir a separação. Olhos tristes, cabeça pendendo para o lado esquerdo, andar arrastado. É a encarnação da pré-suicida.


Impressionante essa capacidade de ver e não ver. De perceber e não perceber. É realmente uma característica minha da qual me orgulho muito. Não é qualquer um que consegue penetrar na mais profunda escuridão sem luz dos segredos pessoais das pessoas.


A tal mulher que estava entrando pela porta, obviamente não está mais entrando pela porta. Está caminhando, caminhando, caminhando e se aproximando, se aproximando, se aproximando...Reconheço! Minha mulher! Coitada, sexualmente frustrada pelo marido, infeliz no casamento e ansiosa em pedir a separação...


A dádiva de ver o que não se enxerga é maravilhosa, mas às vezes deveria ser restrita a biscoitos amanteigados.

terça-feira, 6 de maio de 2008

A vida é um doce


Os ingredientes estavam todos ali. Açúcar, farinha, manteiga, ovos, leite e chocolate em pó. Um desafio jamais imaginado para se superar. Nunca tinha conseguido fritar um ovo, preparar um arroz. Sua meta era fazer um bolo. Um bolo com portento, parrudo, de respeito. Não aquela joça massuda que sua empregada sempre fazia nos aniversários. Sua idéia era arrasar na festa da mamãe pra pararem de chamá-la de marmanja encostada. Aliás, a sutileza dos comentários na família ditava a tônica de sua vida. Nunca entrou pra uma faculdade. Burra feito uma samambaia, dizia a vovó gracinha. Nunca teve namorado. Gorda feito uma porca, dizia o vovô fofucho. Nunca trabalhou. Preguiçosa feito a mãe, dizia o pai. Nunca trabalhou. Impresável feito o pai, dizia a mãe.


Pegou o açúcar.


Tantos anos, tantas reclamações, ninguém nunca parou pra perguntar o porquê de tantos "nãos" em sua vida. Sua vida era um imenso "não". O "sim" só aparecia, geralmente, acompanhado de lágrimas, lenços de papel. Sim, titia tem câncer. Sim, papai foi pro olho da rua. Sim, titio teve um infarto. E todos queriam sorrisos.


Pegou a farinha.


Era gorda. Mas não porque queria. Ok, queria comer uma barra de chocolate por noite. Queria comer uma pizza família vendo filme nos fins de semana. Ok, batia dois pratos de feijoada no almoço de domingo também por simples e espontânea vontade. Mas tinha que haver distúrbio. Ninguém gosta de ouvir que é "gorda feito uma porca". Talvez nem a porca goste de ouvir isso. Mas ela escutava. E todos queriam sorrisos.


Pegou os ovos.


Festinha da mamãe, aquela que sempre preferiu se gabar de ter uma filha linda e extrovertida como era sua irmã. Linda, tudo bem, ela era mesmo. Mas a extroversão, o termo, pode-se trocar por piranhagem. Só a rua já sabia a anatomia íntima da irmã de cor. Ela, a gorda e mondronga, era pauta de temas como hipertensão, obesidade na juventude e cirurgia de diminuição do estômago. E todos queriam sorrisos.


Pegou o leite.


O pai, um cavalo na acepção mais literal que a palavra possa ter, relinchava inclusive. Nunca foi com a cara dela. Desde pequena, lembrava do pai empurrando seu carrinho com uma má vontade juvenil, enquanto sua irmã caminhava no colo da mãe. Lembra de outra circunstância em que, na falta de fralda por causa do avançado da hora, ela ficou nua, enquanto sua irmã vestiu a última fralda da casa. E todos queriam sorrisos.


Pegou a manteiga.


Pegou o chocolate em pó.


Pegou o chumbinho. Era aniversário da mamãe. Festa em família. Tinha que caprichar.


segunda-feira, 5 de maio de 2008

Revisão de conceitos


Adorava aquela franja. Sempre que passava pelos corredores da faculdade, olhava pra ele. E pra franja dele. Aqueles cabelos lisos, sedosos e cheios de balanço. Nossa, mas também tinha aquele piercing...aquele piercing no canto da boca. Na adolescência ia à loucura com o vocalista do Blink 182. Talvez não tenha saciado seu fogo juvenil. E o fetiche do piercing no canto da boca continuava. Putz, e aquelas tatuagens? Nada de ideogramas ou o nome da mamãe no braço. A tatuagem dele era uma guitarra. Uma Fender clássica. Com chamas em torno dela. E não era em qualquer lugar. Era na batata da perna. E, nossa, que batatas...Ela quase tinha convulsões quando ele passava.


As blusas, então, um show à parte. Estampas exclusivas, das melhores marcas e mais caras. E as calças? Skinny sempre, de praxe. Era um rockstar. Ela surtava, minha gente. Aquela cabeça pendendo pro lado, aquela malemolência rocker no andar, aquele cigarro caindo entre os dedos. Faltava todas as aulas, porque tinha ensaios com a banda. Uma banda que ninguém sabia o que tocava, onde tocava e se tocava. Mas ele tinha uma banda, cara! Nossa, ela ia à loucura! Os amigos dele eram sacerdotes, que circundavam aquela entidade iluminada pela luz do carisma. E do pop, honney! Uma sensação absoluta na faculdade, ele nunca sequer olhou pra ela. Mas ela, no seu impulso teen retardado pelo tempo, não escondia a necessidade de possuir aqueles olhos delineados por um lápis preto emprestado pela mãe, aquele colete que foi da avó, aquela boca cheia de gloss, aquela androginia mickjaggeriana, uma coisa louca!


De repente, surge ele, vindo em sua direção, passos largos, o gingado, franja pro lado, cigarro caído. E lá vem ele. E ela pronta pra dizer sim, pro que quer que fosse. Podia ser uma ordem. "Coma cocô!" Ela diria sim! Chegou:


-Oi, menina!


-O..oi..olá!


-Posso te perguntar uma coisa?


Ela, em pânico e êxtase:


-Pode, claro que pode!!!


-Tô há séculos pra te perguntar: que shampoo você usa nesse cabelo, amore? Gente, tá uma coisa de louco! Sedosos até dizer chega! Jesus!


Ela levantou e foi embora. Ele ficou a ver navios. Então sua amiga resolveu perguntar a ela, após correr para alcançá-la:


-Que foi isso, garota? Deixou ele falando sozinho!


-Ah, só pode tá de sacanagem, né...


-Por que, ué?


-Mais mulher que a minha mãe, cacete!


-Porra, o cara usa gloss, lápis de olho, roupa de marca, anda rebolando e faz chapinha. Macho é que ele não podia ser, né?


-Ah, cara! Pensei que era estilo, charme, rockstyle! Não adianta. Só tem viado nessa porra.

domingo, 4 de maio de 2008

Catarina não são duas - parte 3


Catarina entrou no quarto. Luzes acesas. Chovia muito lá fora. Trovões. Ela entrou lentamente no quarto. Olhou para a cama. Estava com a colcha revirada. O armário escancarado. Suas roupas espalhadas. A cortina caída. O abajur derrubado, no chão, quebrado. As janelas escancaradas. Virou-se para a direita. A porta do banheiro que havia dentro do quarto estava encostada. Percebeu que não eram apenas vozes. Reconheceu uma das vozes. Ela implorava. Sumia. Voltava. Implorando. Agora ouvia. As vozes. Caminhou. Som de torneiras abertas. Ela abriu a porta.



Catarina entrou no apartamento. A sala estava totalmente revirada. O sofá de cabeça para baixo. As janelas fechadas. A cortina de persianas caída. A luz do abajur começou a falhar. O tapete estava dobrado. Os quadros na parede tortos. Os porta-retratos no chão. Virou-se para a esquerda. A porta do lavabo estava encostada. Catarina foi até o quarto. Tinha seus motivos. Foi até lá. Estavam dormindo. Os dois, abraçados. As bengalas também, dormiam abraçadas. Mas havia vozes. Vinham do lavabo. Foi até a cozinha. Pegou uma faca. Ela voltou. Não reconheceu as vozes. Elas conversavam. Continuava ouvindo. As vozes. Caminhou em direção à porta. Decidiu abri-la.



Catarina abriu a porta do banheiro. Estava sendo afogada. Sufocada na banheira. Ele se virou. Catarina deu um grito. Olhou para a banheira. Tarde. Estava morta. Jogou-se em cima dele. Escorregou. A cabeça de Catarina foi contra a borda da banheira. Caiu desmaiada, com a cabeça sangrando, encostada na banheira. Ao lado dela, tão pequena.



Catarina abriu a porta. Eram dois. Catarina esfaqueou. Eram dois. Fechou a porta. Foi até a cozinha. Lavou a faca. Colocou no lugar. Foi até a porta. Saiu, deixando encostada. Caminhou pelo corredor até seu apartamento. Ela não fugiu.


Catarina não são duas.

sábado, 3 de maio de 2008

Spaghetti


Música ao fundo. Era um duelo inesquecível. De um lado, Jesse James. Do outro, Sergio Leone. De um lado, o pós. Do outro, o pré. Música ao fundo. De um lado, os campos enquadrados como pinturas dinâmicas, nostálgicas e fluentes. Do outro, suor, sombra, terra, caricatura e closes improváveis. Música ao fundo. Jesse James se aproxima. Leone se aproxima. Frente a frente. O pós e o pré. O pré e o pós. Chapéus, coldres, botas, cuspes e olhar fixo. Música ao fundo. Corta.


Jesse James está caído. Sergio está de pé, a seu lado. Close em Sergio. Ele cospe em cima de Jesse James. E vai embora. Abre o plano. A cidade está deserta. E Sergio caminha em direção contrária a Jesse James, caído, morto, cuspido. Música ao fundo. Sergio olha para trás, close nele. Enxuga o suor, cospe no chão e diz:


- Spaghetti.


Música ao fundo. Moscas em cima de Jesse James, que mexe a mão, juntando um punhado de terra.


quinta-feira, 1 de maio de 2008

Aquelas mãos


Tocou o corpo dela com todo o cuidado que o momento merecia. Alisou seus cabelos, tão sedosos e cheios de brilho. Olhou para seu rosto. Ela estava com os olhos fechados, mas ele imaginava que ela sentisse tudo que ele estava sentindo. Sem dúvida alguma ela sabia o que ele queria e o que aquelas mãos estavam querendo. Dizer. Elas eram únicas. Tocou seus lábios. Levou a mão até sua boca para fazê-la sentir seu sabor. Depois da boca, sua mão passou pelos seios, tão arredondados como sempre foram. Vistosos. Apertou sua cintura. Ela permanecia com os olhos cerrados. As mãos voltaram aos seios. Pareciam atraí-lo indubitavelmente. De volta à cintura, passou pelas coxas, grossas. Apertou-as com toda força. Ela permanecia impassível. Desceu até seus pés. Alisou-os com toda delicadeza e cuidado. Olhou para o rosto dela. Aproximou-se. Beijou seus lábios. Ela permanecia com os olhos fechados. As mãos já haviam feito o que tinham que fazer. Perfeitamente. Um homem se aproximou e, com calma, avisou: era preciso, infelizmente, fechar o caixão.