terça-feira, 6 de maio de 2008

A vida é um doce


Os ingredientes estavam todos ali. Açúcar, farinha, manteiga, ovos, leite e chocolate em pó. Um desafio jamais imaginado para se superar. Nunca tinha conseguido fritar um ovo, preparar um arroz. Sua meta era fazer um bolo. Um bolo com portento, parrudo, de respeito. Não aquela joça massuda que sua empregada sempre fazia nos aniversários. Sua idéia era arrasar na festa da mamãe pra pararem de chamá-la de marmanja encostada. Aliás, a sutileza dos comentários na família ditava a tônica de sua vida. Nunca entrou pra uma faculdade. Burra feito uma samambaia, dizia a vovó gracinha. Nunca teve namorado. Gorda feito uma porca, dizia o vovô fofucho. Nunca trabalhou. Preguiçosa feito a mãe, dizia o pai. Nunca trabalhou. Impresável feito o pai, dizia a mãe.


Pegou o açúcar.


Tantos anos, tantas reclamações, ninguém nunca parou pra perguntar o porquê de tantos "nãos" em sua vida. Sua vida era um imenso "não". O "sim" só aparecia, geralmente, acompanhado de lágrimas, lenços de papel. Sim, titia tem câncer. Sim, papai foi pro olho da rua. Sim, titio teve um infarto. E todos queriam sorrisos.


Pegou a farinha.


Era gorda. Mas não porque queria. Ok, queria comer uma barra de chocolate por noite. Queria comer uma pizza família vendo filme nos fins de semana. Ok, batia dois pratos de feijoada no almoço de domingo também por simples e espontânea vontade. Mas tinha que haver distúrbio. Ninguém gosta de ouvir que é "gorda feito uma porca". Talvez nem a porca goste de ouvir isso. Mas ela escutava. E todos queriam sorrisos.


Pegou os ovos.


Festinha da mamãe, aquela que sempre preferiu se gabar de ter uma filha linda e extrovertida como era sua irmã. Linda, tudo bem, ela era mesmo. Mas a extroversão, o termo, pode-se trocar por piranhagem. Só a rua já sabia a anatomia íntima da irmã de cor. Ela, a gorda e mondronga, era pauta de temas como hipertensão, obesidade na juventude e cirurgia de diminuição do estômago. E todos queriam sorrisos.


Pegou o leite.


O pai, um cavalo na acepção mais literal que a palavra possa ter, relinchava inclusive. Nunca foi com a cara dela. Desde pequena, lembrava do pai empurrando seu carrinho com uma má vontade juvenil, enquanto sua irmã caminhava no colo da mãe. Lembra de outra circunstância em que, na falta de fralda por causa do avançado da hora, ela ficou nua, enquanto sua irmã vestiu a última fralda da casa. E todos queriam sorrisos.


Pegou a manteiga.


Pegou o chocolate em pó.


Pegou o chumbinho. Era aniversário da mamãe. Festa em família. Tinha que caprichar.


5 comentários:

Cavalinho disse...

Genial!
sério.
muito bom. adorei. é o meu A+

Vinícius Haesbaert disse...

A CULPA É DO CHOCOLATE,
sempre o chocolate.

Gostei! Dahora o puxadinho.

Sônia disse...

Chumbinho?! Ai meu Deus! rs...

Pedro Rabello disse...

Nascia uma nova Suzane von Richthofen.

deborah disse...

nossa, sua produção é frenética!
admirável!

achei esse daí um dos melhores, hein?!
beijoca